segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A Fantástica Fábrica de Cervejas

Marco degusta uma pale ale com seus cachorros Nóia e Pivo em sua fantástica fábrica, no Campeche, em Florianópolis


Por Thiago Momm, com fotos de Gabriel Rinaldi


“Você pensa que o homem precisa de regras; ele precisa é de cerveja”, disse o escritor norte-americano Henry Miller. Você talvez pense que o homem precise sempre comprar cerveja, mas ele também pode fabricar a sua, lembra o cervejeiro de panela Marco Zimmermann, presidente da Acerva, a Associação dos Cervejeiros Artesanais de Santa Catarina. No Campeche, no fundo da casa de Marco, faz-se cerveja ao som de Bob Dylan. Faz-se cerveja em um quintal com dois freezers, uma geladeira, duas bicicletas, vários engradados, um sofá rasgado, um amigo cervejeiro chamado Murilo, uma coleção de long necks importadas, um pernil na churrasqueira, uma máquina de lavar roupa, um laptop, cinco copos, quadro mesas de plástico, 25 garrafas abertas espalhadas e uma cadela chamada Nóia circulando com seus filhos, Sirius e Pivo.

A Naipe passou um dia bebendo na fantástica fábrica de cerveja de Marco e seu amigo Murilo para tentar entender o orgulho de fabricarem a “Opus Beer”, que eles degustam tirada do barril em plena praia; que bebem, em long necks com rótulo personalizado, na frente do estádio de futebol; que abrem, dia de semana à noite, para apreciar com comida alemã.

Mas como explicar para esses jornalistas que nunca mexeram um caldo de cevada no panelão, nunca dosaram o amargor da própria cerveja, nunca produziram várias receitas diferentes, nunca as ofereceram aos amigos – como explicar o orgulho? Marco sorri, o olhar fica vago, ele nem gasta o português. No máximo, os jornalistas insistindo, brinca que fazer cerveja tem o seu custo, mas é melhor, sei lá, “que colecionar selos”.

A panela de druida do cervejeiro caseiro

O custo de fazer cerveja não é absurdo. O equipamento inicial, dependendo do gosto por improviso (como moer cevada com uma furadeira encaixada em um funil) ou por kits completos, novinhos na caixa, encomendados pela internet, fica entre R$ 500 e R$ 1000. Boa parte dessa grana pode ser abatida: é política comum, no universo cervejeiro caseiro, emprestar e pegar emprestado os meios de produção. Outra opção é alugar o equipamento, mas trata-se de um serviço ainda não muito difundido no Brasil.

Arranjado o aparato, o que você mais vai precisar é interesse. A internet ajudou no ressurgimento dos cervejeiros caseiros, e é nela que você encontrará, mais que receitas, gente disposta a servir de torre de comando enquanto você pilota as panelas. Sem qualquer má vontade. O objetivo da galera da Acerva é ampliar o número de encarnados em produzir geladas artesanalmente. Indo a acervacatarinense.com.br e integrando a boiada, não será difícil encontrar uma ajuda virtual para a sua primeira produção. 

Mas vale o aviso de que para fazer cerveja, independente da quantidade, você precisará de seis a dez horas e não vai entorná-la em seguida (a Naipe bebeu as do acervo). “Tem um pessoal que faz pela primeira vez e pergunta ‘tá, e aí, que horas a gente vai tomar?’”, conta Marco. Essa hora, que depende do tempo de fermentação e maturação, chega no mínimo 15 dias depois. “O tempo não respeita o que se faz sem ele”, bem lembra uma inscrição entalhada em madeira e pendurada no Gueuze Museum, localizado em uma fábrica de cerveja artesanal em Bruxelas.

Raspas de coentro

A fábrica tem ares anárquicos, mas de lá saem cervejas com as receitas da Hoegaarden e da Duvel, para citar apenas duas pérolas belgas. E fica a mesma coisa? “Dá para fazer o mesmo tipo de cerveja. Mas ninguém consegue reproduzir o mesmo buquê. Uma cerveja é feita com vários ingredientes próprios daquela marca, daquele lugar”, explica a mestranda em Engenharia de Alimentos pela UFSC Amanda Reitenbach. Suas pesquisas são todas ligadas à cerveja e ela já estagiou em duas grandes fábricas no Paraná.

Não sendo possível reproduzir exatamente a mesma gelada, faça como Marco: seja excêntrico e acrescente raspas de coentro ou laranja a uma receita consagrada. 

“Certamente, pode ser menos caro fazer a própria cerveja, e é por isso que muitos começam”, escreve o especialista Charlie Papazian no livro gringo “The complete joy of home brewing”. “Mas se você embarcar na viagem de fazer cerveja em casa porque gosta de cerveja, logo descobrirá que qualidade, independência e variedade são as razões para continuar”. 

Marco começou meio por economia, meio pelo tesão de reproduzir cervejas estrangeiras no seu quintal. Voltando de uma viagem pela Alemanha, se descobriu com saudade do que bebera por lá e sem dinheiro para bancar essa finesse. Para fabricar um litro de uma cerveja na linha da Hoegaarden, despende entre R$ 4 e R$ 5, aí diluído o custo do equipamento e incluída uma simbólica mão-de-obra. No supermercado, paga-se cerca de R$ 4,50 por uma Hoegaarden de 330 ml. Sem raspas de laranja.

Marco e seu amigo Murilo Foltran já fizeram 75 levas de Opus – e, já na segunda, levaram o vice-campeonato no concurso Mestre Cervejeiro da Eisenbahn. Até hoje, foram 2 mil litros em dois anos de produção, o que a “artesanal automatizada” Eisenbahn leva um dia e a Imbev, maior grupo cervejeiro do mundo, 3 segundos para produzir. Apegados à ideia da variedade, eles já desovaram 35 receitas de cerveja de variados estilos, Pale Ale, Witbier, Extra Special Bitter, Stout, Pilsen e outras.

As cervejas que fazem chegam a 12% de teor alcoólico, e o grau de amargor, a 42 IBU (Unidades de Amargor Internacional, na sigla em inglês), comparado com 4,5% de teor alcoólico e menos de 10 IBU da maioria das que consumimos no país.

A coleção de cervejas internacionais inspira a fábrica

A volta da panela


As cervejas nasceram caseiras – no mínimo em 3400 a.C., por registros que se tem da cidade grega de Tebas. Mas a bebida tinha pouco a ver com a que consumimos hoje e não devia andar lá essas coisas, já que o famoso Código de Hamurabi, de 1730 a.C., previa o afogamento do cervejeiro na própria bebida no caso de ela ficar intragável.

A produção de cerveja caseira seguiu ao longo da História, na Idade Média paralela à dos mosteiros e, de dois séculos e meio pra cá, à da indústria. Quando essa indústria se massificou, muitas panelas deixaram de ferver a cevada em casa – e, mais que isso, as pequenas cervejarias sumiram: em 1883, Blumenau tinha oito delas, e todas acabaram fechando. “Durante décadas a vocação cervejeira dos catarinenses ficou restrita às cozinhas dos descendentes de alemães. Fusões e aquisições tinham derrubado-as na segunda metade do século 20”, escreve João Alexandre Lombardo no livro “Santa Catarina à mesa”. 

Hoje, embora as quatro maiores cervejarias brasileiras detenham 99% do mercado, há uma demanda do consumidor por sabores mais específicos, às vezes só oferecidos por marcas importadas. Isso estimulou o surgimento de pequenas cervejarias pelo país. Em Santa Catarina, em 1996 foi aberta a cervejaria artesanal Borck, em Timbó, e a ela seguiram-se o bem conhecido exemplo da Eisenbahn (agora pertencente à Schincariol) e outros. 

Esse estímulo, claro, se estendeu à produção caseira: a Acerva catarinense surgiu em Florianópolis em 2007, a partir do encontro de amigos que se reuniam para tomar cervejas especializadas em uma padaria da Trindade. A associação contava com menos de 10 pessoas, e hoje tem mais de 60. São promovidos workshops (às vezes chamados workchopes), festivais e encontros com cervejeiros de outros estados – que também têm a sua Acerva.

Para Murilo, fazer cerveja em casa não deveria causar estranhamento. Além da ajuda da internet, os tempos são propícios porque os ingredientes estão mais acessíveis, e o processo, muito evoluído: “A indústria aperfeiçoou os métodos de fabricação, e a gente usa esse aperfeiçoamento”, diz, enquanto a Opus 75 ferve à sua frente. 

A pesquisadora Amanda diz ser mais fácil, para os novatos, fazer uma cerveja ruim do que uma cerveja boa. O cervejeiro de panela Marco, pelo contrário, anima-os: “Em alguns momentos é preciso concentração, mas no geral é mais fácil acertar do que errar”.

Faça sua própria gelada 


Fazer cerveja, acredite, não é tão difícil quanto se pode pensar. Mesmo assim, a lista de equipamentos e a receita envolvem no mínimo 15 utensílios e 20 passos. Para começar, vá ao site obiercevando.com.br. E guarde recomendações do cervejeiro Marco Zimmermann: “O erro mais comum é não limpar fermentador, sifão, mangueira, garrafa, galões – tudo que entra em contato com a bebida”, diz. Usar fermento estragado é outra roubada usual. Se quiser reduzir o tempo de espera para beber, vale comprar um post-mix, aquele barril de metal que armazena a cerveja, mistura-a e despeja-a sob pressão. Como os bares os substituíram por equipamentos mais novos, você pode encontrar o post-mix nos ferros-velhos – se um cervejeiro caseiro ainda não passou por lá. De resto, no começo você tende a ficar tenso, mas pode acertar mesmo sem um cervejeiro experiente por perto: “Já ajudei um cara por email enquanto ele fazia, e depois ele me disse que deu tudo certo”, sorri Marco. 





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